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De Búzios para o Rio: as voltas por cima da chef Samantha Laurindo
Por Antonia Leite Barbosa | Publicado em 4 de agosto de 2020

À sua disposição, uma infinidade de ingredientes no aguardo de mais uma criação gastronômica e, no entanto, a chef Samantha Laurindo não abre mão de um dois que lhe são tão caros: o acaso e o destino da vida. Nascida e criada no Espírito Santo, Laurindo, que durante anos trabalhou no comércio do Rio, se viu diante de uma oportunidade de se conectar com o público e se reencontrar, após enfrentar em 2011 um câncer de ovário, ao ser convidada para cozinhar para uma família. “Eu era jovem, cheia de energia e queria sentir a vida de novo. Após a recuperação estava fisicamente debilitada e com aparência diferente da que costumava ter, devido à perda de cabelos com o tratamento. O ponto é que nunca havia cozinhado para ninguém, apenas observava uma grande amiga chamada Rosângela cozinhar. Sem poder deixar a oportunidade passar, me arrisquei. O resultado foi o melhor possível e, definitivamente, se não fosse essa chance, não teria dado o pontapé inicial para minha carreira”, relembra Samantha que, na época, tinha apenas 24 anos e nunca havia pensado em investir no setor.

A capixaba, que tem o CEP de Búzios, inaugurou, destemidamente, o seu legado na culinária com um prato que viria a ser um dos seus maiores sucessos: o Bobó de Camarão. O insumo nunca mais saiu da cozinha da chef e hoje Samantha assina o cardápio, cujo carro-chefe são os frutos do mar, do seu próprio buffet. “Tenho o privilégio de estar em Búzios e ter todos esses insumos sempre frescos. Também acho que os frutos do mar “falam” muito sobre mim e o que sou hoje. Quando você vence um câncer, que os médicos tinham certeza que não seria possível superar, você passa a viver a vida mais leve e fresca, assim como os produtos que utilizo!”, brinca. De portas abertas desde 2015, o local, que traz o nome da chef e antes especializado somente em casamentos e eventos, atende também pedidos de jantares personalizados de acordo com os desejos gustativos dos comensais em formato de finger food, entradinhas ou completo.
Entre as opções preparadas com ingredientes sazonais e artesanais, destaque para a moqueca de lagosta com camarão, camarão VG com mousseline de baroa e rosbife em crosta de ervas e creme de mostarda. Diante de uma pandemia mundial, a chef se viu de mãos atadas e, mais uma vez, decidiu enfrentar as adversidades impostas pelo momento atual como uma forma de se reinventar. Agora, o serviço está disponível por delivery na cidade do Rio com a possibilidade de encomendas dos pratos acimas, que servem até duas pessoas e cuja entrega deve ser agendada 24h antes, e de combos especiais, entre eles o “Celebrar - Para Comemorar com Amor” . Sob as restritas recomendações em combate ao COVID-19, o menu (R$2.500) pode ser servido para até 10 pessoas e oferece mesa de antepastos com mais de 10 itens, como tartar de salmão e camarão crocante, principais clássicos da casa, entre eles o Ragu de Carne, e sobremesas de chocolate, como o Naked Cake de chocolate assinado por Verônica Fellipe.

Embora o sucesso parecesse estar desde o início no horizonte desta empreitada de Samantha, a expansão para a metrópole, sem dúvida, não foi tão súbita tal qual o ir e vir das ondas. Se hoje seu nome é reverenciado por figuras renomadas da gastronomia carioca, como o chef Claude Troigros, e de clientes como a família do ator Toni Garrido, é porque Samantha não se atreveu a olhar para trás. Com os pés fincados na areia de Búzios, a banqueteira investiu na profissionalização do seu talento nato no Instituto Federal Fluminense (IFF) e aperfeiçoou a prática nos restaurantes Bar do Zé e Rocka Búzios, lugares badalados da região litorânea, até se sentir pronta para assumir a independência.
Essa perseverança e determinação em aceitar o seu novo destino foi essencial para que ela conquistasse o seu lugar no setor gastronômico enquanto mulher e negra. Sempre preteridas, as profissionais negras, ainda mais dos que os homens, são subjugadas e constantemente são alvos de contestação da sua capacidade sob os estigmas impostos pela herança escravocrata e misógina da sociedade. “Ainda é difícil as pessoas entenderem que, sim, há uma mulher à frente do seu negócio e, sim, é uma mulher negra. Normalmente as pessoas chegam até mim e perguntam onde está a dona do buffet, ou quem é a responsável por tudo e, quando explico que eu sou a Samantha Laurindo, ainda há aqueles que me olham com um olhar surpreso. Mas isso tudo me deixa mais forte e determinada a dar o meu melhor. Venço os preconceitos dia após dia, com um trabalho bem feito e um sorrisão no rosto.”

Ciente do seu valor, Samantha, na companhia de outras cúmplices de profissão e luta, como Ana Ribeiro, Dandara Batista e Andressa Cabral, subverte as ideias de que seu lugar é na cozinha apenas quando é para servir o outro e ouvir ordens enquanto dona do seu próprio negócio que tem como mote o conceito chave do empoderamento: o de oferecer a mão aos semelhantes diretamente do lugar que antes lhe era negado. “ Isso acontece muito com os funcionários também. A maioria ainda é negra e, infelizmente, muitas vezes cria barreira como, por exemplo, o simples chamar pelo nome ou não”, relata. A responsabilidade social foi outro desdobramento do acaso na vida da chef. Adepta da comida engajada, Samantha descobriu que a gastronomia poderia ser uma forma de retribuir ao universo pelos encontros e oportunidades que sucederam a descoberta e tratamento da doença.
Todo o apoio financeiro e emocional recebido dos integrantes da Casa de Apoio aos Portadores de Câncer de Cachoeiro de Itapemirim (GAPCCI), sua cidade natal para qual retornou durante o tratamento, foi transformado no projeto social “Abraçando Mulheres”, cujo propósito é possibilitar o acesso seguro e necessário de tantas outras mulheres ao tratamento oncológico e diagnóstico precoce através de jantares organizados em prol da causa. “Os projetos sociais são a minha vida. É a forma que tenho de agradecer a Deus tudo que fez por mim quando achei que não sobreviveria, ainda na minha juventude. Hoje estou aqui, forte, e sinto que cuidar das pessoas é o mínimo que posso fazer para tentar, de alguma forma, retribuir toda a gratidão que sinto”, reflete a chef, que também promove palestras sobre medicina humanizada e realiza visitas a pacientes terminais - principalmente aos jovens a fim de oferecer uma faísca de esperança e afeto. “É indescritível o olhar deles ao escutarem a minha história e, perceberem que se eu consegui, eles também podem. É um tipo de recarga de energia e esperança não só para os pacientes, mas para mim também.”

No próximo dia 5 de agosto, via delivery, será realizado um dos jantares beneficentes, do qual toda a arrecadação será destinada à organização. A iniciativa, além de apresentar o trabalho e mérito do projeto, contribui para garantir que pequenos e médios produtores, ainda mais afetados financeiramente pelos efeitos da pandemia na economia, tenham caixa suficiente para alimentar suas famílias e arcar com as burocracias da vida moderna. Assim como na cozinha do restaurante, todos os pratos são produzidos com alimentos frescos e orgânicos comprados diretamente de empreendedores que conquistaram a confiança da chef pela procedência e qualidade dos produtos. “A certeza de que você está contribuindo diretamente para o sustento daquela família é o que me faz feliz. Nesse momento de pandemia, eles precisam muito de nós. Cada venda é importante, eles vivem com a venda diária. Às vezes, a sua compra resultará em uma alimentação mais farta para eles. Consumir desses pequenos produtores traz benefícios não só para o corpo, mas para a alma”, contempla.

É assim que Samantha planeja seguir crescendo cada vez mais no ramo: aprender para compartilhar e transformar. “Sempre fui uma pessoa muito alegre e vi na gastronomia uma forma de levar felicidade e amor. Ver o brilho no olhar de cada um ao degustar a minha comida e faz sentir viva, me encanta a cada trabalho, além de ser uma forma de ajudar as pessoas. Por inteiro, me encontrei na área”, afirma. Com a alma de uma incansável sonhadora, a chef, apesar de ter planos para o futuro, conduz a sua vida profissional sob o lema que mudou a sua vida: tudo tem seu tempo e suas razões, e aos olhos do crente com certeza não acontece para ser em vão. “Tenho muitos projetos, desejos, sonhos e ambições, mas sei esperar o tempo de cada um deles”, conta a chefe que pretende aprofundar os seus conhecimentos no ramo em viagens ao redor do mundo. Por ora, só resta aceitar a incerteza do futuro, porém, se for depender dos feitios dos últimos oito anos, certeza de que façanhas admiráveis farão parte dos próximos caminhos.